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Casa de palavras

Certa vez empapelei as pernas da mesa, fazendo paredes.

Vazei porta e janela, e tive longos papos de comadre com minha mãe, que no andar de cima passava roupas.

Improvisei uma casinha no paiol, meio espremida entre as ferramentas do meu pai. A proximidade com a horta possibilitava grande variedade de verdinhos, para as panelas. Os brinquedos, tão lindos quanto o aparelho de chá de verdade, da minha mãe, abrilhantaram as festas das bonecas.

A humilde casinha do porão, era na terra de debaixo da casa, as panelinhas improvisadas com tampinhas de lata de leite e pauzinhos como talheres para a comida de grama.
Na casinha do sótão, a mais rica, podia-se descer as escadas com os sapatos de salto da mãe, fazendo pose para fotos.

Mas foi numas férias, na casa da avó materna, que criei uma bem bonita, com as capas duras dos velhos livros de contabilidade do meu avô. Empilhados e sem uso, pediam para virar brinquedo e a avó permitiu. As capas duras devem ter se tornado mais felizes, com a nova utilidade: paredes decoradas da casinha de papel. Recortei propagandas das revistas Seleções de Reader Digest e compus os cômodos. Aquela revista fornecia cozinhas, eletrodomésticos, quartos, banheiros, carros e uma infinidade de objetos de decoração para tornar as horas de brincar, as mais felizes da infância.

Essa casinha, portátil, era disparadora de sonhos, de romance, num universo de possibilidades de felicidade. Uma casa para meus afetos de menina. Uma casa de palavras!
Imagem de casa é distinta para cada um de nós. É composta da nossa experiência relativa a casa: o cheiro, o calor do lar, a segurança, o jardim, uma saudade e os segredos.

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Bem guardada

 

Ao chegarem na esquina do colégio, trocaram um beijo, há muito desejado.

Com sorriso, com possibilidade de acontecer outras vezes, porque o amor estava na esfera da vida deles. A adolescência trazia o frescor das descobertas que vinham aos jorros, entre a geografia e a tabela periódica.
A sensação dos lábios dele permaneceu com ela, apesar da fala dos professores, do burburinho do intervalo e daquele resto de dia; a sensação dos lábios dela permaneceu com ele, apesar do papo dos colegas e da aula de gramática.
O som da voz dele fazia borboletas roçarem asas dentro do peito dela, o coração aos pulos; a visão das mãos dela, abraçando os livros, causava na barriga dele uma espécie de arrepio elétrico.
Como não se viam nos finais de semana, a espera do reencontro amontoava a saudade e o desejo.
Aquele beijo marcou a trajetória amorosa dos jovens, que a vida separou naquele ano.
Somente muito mais tarde se falaram, tomados por surpresa quase paralisante. Haviam constituído família e uma vida repleta de êxitos e muitos projetos.
O olhar terno encontrou comunicação direta com seus corações, enquanto as palavras saíram da boca, com efeito social, apenas. Até porque supermercado não é o melhor lugar para falar de tantas etapas de vida.
Com horários cronometrados, despediram-se. Ainda assim, foi um bom reencontro.

Como seria se eu tivesse me casado com ela?
Como seria se eu tivesse me casado com ele?
O primeiro amor era uma das melhores recordações daquela época doce de suas vidas. E permanecia límpida!

 

imagem: http://ffw.com.br/noticias/moda/first-kiss-primeiro-beijo-fashion-film-wren/

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XV

Foi um encontro inusitado, naquela manhã de sábado, porque eu não esperava o turbilhão. Mas a XV de Novembro é assim mesmo, a cada quadra, uma manifestação. Vi perucas coloridas, ouvi uma canção. As vadias vinham ao meu encontro! Mergulhei na atmosfera do desfile, emocionada, sorrindo e concordei com o que elas solicitavam e denunciavam à cidade. Nas palavras escritas em cartazes e nos corpos seminus, a expressão de liberdade, de ser dona de si, abria espaço. Mulher pode vestir-se como achar melhor e deve ser respeitada. Assim, passaram como uma enxurrada, aplaudidas, fotografadas.

Meu feminino se solidariza com todas as vadias, desde muitos séculos.

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Rua XV de Novembro – Rua das Flores, em Curitiba, Paraná, Brasil.Fotos por Rodrigo Gomes.

 

Segui em frente, ainda pensando nelas e deparei-me com uma tenda que mostrava fotos de animais maltratados/processados, antes de chegar “à nossa mesa”. Fotos horríveis! A tristeza reavivou a culpa pela responsabilidade de ainda consumir e trouxe novamente a ideia de não comer mais carne. A vaga sensação de enjoo me impeliu a sair logo dali.

A carne, de dois jeitos, passou por mim, naquela manhã. Em ambos é desejada.

Não se passa pela XV, incólume!