Por Luiz Ernesto Wanke –
(Durante o tempo que fui dentista na Penitenciária Central do Paraná ouvi muitas histórias dos internos. Esta, da morte do Seu Estefano é uma das poucas documentadas, no jornal interno, que o ‘Repórter Maluco’ – como ele se autodenominava – registrou no seu jornalzinho ‘Notícias das Grades’, mimeografado na secretaria da penita e distribuído entre os internos).
Tinha as mãos suaves e milagrosas de anjo como os companheiros de cativeiro alardeavam pelos cantos da penitenciária. No seu ofício de massagista entendia como ninguém de músculos doidos e nervos fora do lugar. Trabalhava como preso voluntário lá no fundão, na ala da saúde e numa maca improvisada. Na sua arte usava somente sua bendita mão, esfregando água como linimento e ia subindo nas massagens pelos arredores do problema chegando ao exato lugar do machucado.
Num lugar onde nada é de graça, ele não aceitava nada pelo bem que fazia. Recusava dos colegas até um ‘courinho de rato’, como chamam lá dentro uns trocadinhos de pouco valor. Quando um aliviado insistia, repetia orgulhoso que – graças a Deus – ele não dependia de paga:
“- Tenho dois filhos que qualquer dia desses vão aparecer na visita de domingo…” E como ninguém nunca viu no pátio nenhum desses parentes, ele arremedava sua desculpa: “- Sabe do sítio até aqui é chão!”
Como suas palavras fizessem parte de uma conspiração, ninguém se atrevia a perguntar mais nada. Todos disfarçavam virando o rosto. Mas do canto de olho lá estava sempre a lágrima furtiva que o massagista procurava disfarçar, tossindo.
Também estava implícito neste acordo silencioso do massagista e seus pares, que ninguém perguntasse mais nada. Sua história era repetida a toda sessão de massagem e ouvida automaticamente em silencio sepulcral.
Por sua vez, enquanto trabalhava, seu Estefano continuava sua prosa, agora mudando para outros causos mais alegres:
“- Sabe, quando eu era moço fui namorador… Mas durou até que conheci a falecida Maria na fazenda do compadre de meu pai. Nem terminei de botar o olho grande nela e me encantei desde a primeira vez… Estava sentada de costas, distraída, tirando leite da vaca quando eu cheguei por trás e taquei-lhe um beijo. Não sei o que me deu na cuca, tanto que a menina ficou desorientada e nem tirou seus olhos do ubre da vaca. Na surpresa, o susto fez que ela resvalasse no balde entornando todo o leite e tingindo de branco o chão lamento. Depois, deu no que deu e nos casamos”
Passado o papo nostálgico, a conversa era livre. Então o pessoal podia provoca-lo:
“- E aquela ‘chinfra’ (mulher bonita) da visita do domingo? Benza Deus, que mulherão!”
Parava a massagem e arrancava uma carcomida carteira do bolso, com as mesmas fotografias coloridas e sebosas para mostrar para os assistentes como se fosse uma novidade:
“- Veja, está com a filharada criada como eu!”
Na semana que antecedeu o dia das mães seu Estefano tirou folga para preparar um bonito e vistoso cartão para a nova namorada quarentona. Desenhou um grande coração vermelho no centro da cartolina e cobriu-o colando um pedaço de veludo vermelho. Pediu para o companheiro de cela que copiasse em letras caprichadas as palavras bonitas ditadas pelo enfermeiro, falando de amor, felicidade e esperança.
No dia da entrega, infelizmente, o cartão ficou abandonado em cima da maca. Acharam-no morto na cama na manhã do domingo festivo. No sábado, tinha reclamado de uma dorzinha no peito, mas coisa sem importância, segundo ele relatou para os companheiros. Ia esperar até a segunda feira para consultar com o médico da cadeia.
E quando a segunda chegou e na penitenciária voltou à rotina de trabalho, os funcionários e guardas de segurança da ala da saúde ficaram chocados com a repentina perda, já que Seu Estefano era um cara querido por todos. Diante daqueles comentários aos bons que aparecem nestas ocasiões, um dos guardas encasquetou:
“- Destino cruel pro seu Estefano… Morrer assim? O que será que ele fez para merecer este castigo dos infernos?”
Alguém se lembrou:
“- Quer saber mesmo? Pergunte na secretaria pro Zé das Fichas.”
O guarda foi mesmo consultar o prontuário do falecido, lá no prédio da administração. Voltou furibundo:
“- Então o que o velho fez de grave?”
“- Rapaz, numa noite escura em seu sítio, ele esfaqueou a mulher – aquela do balde de leite – esquartejou-a em nacos pequenos, colocou as partes dentro de uma mala, completou com pedras e atirou tudo no fundo do rio que passa atrás de sua casa.”









O caos predomina quando inicio a caminhada entre obras de arte de cada Pavilhão. O antigo tentando encontrar a linguagem mais contemporânea, dando espaço a coerência, tarefa difícil para o artista que vive num mundo dominado pelo caos. Ao espectador fica a busca pelo estético conceitual. Nada é fácil neste aglomerado de obras artísticas.
Na Bienal de Veneza 2013, a tentativa foi a busca de uma reflexão humana, a religação com o divino, tendo Jung, dando o “start” com seu livro “O Segredo da Flor de Ouro”, refletido em muitas obras como o vídeo brasileiro sobre uma sessão espírita, o Vaticano com o encontro de almas, em sessão de cinema onde as imagens de pessoas se encontravam com os visitantes tocando-se as mãos. Além de outras obras instigantes, como um curta metragem sobre o tempo, provocando uma reflexão da plateia sobre o uso do tempo na vida cotidiana.
O Japão conseguiu aliar o belo e a mensagem, apresentando uma instalação com um barco, simulando uma rede imensa em tons maravilhosamente vermelhos, como uma árvore imensa, de onde caiam chaves como frutos. Ali consegui ver o belo em total harmonia com a mensagem. As chaves da comunicação global, aquelas que abrem a linguagem universal através das redes, aquela que permite pessoas dos rincões mais longínquos do planeta trocarem impressões e afetos. Original e simples, como deve ser uma bela obra de arte. Diante dela as pessoas se extasiavam com uma sensação de paz inigualável, atingindo subrepticiamente um dos temas da Bienal 2015.
Impactante foi a obra exposta na Igreja de San Giorgio Maggiore, como evento paralelo da Bienal, do espanhol Plensa. Magnífica e realmente criativa, com aquela estética conceitual que leva o espectador à reflexão. Uma cabeça gigantesca de tela cromada, sutilmente com os contornos da face humana, como um enigma na nave principal da igreja, ao lado, suspensa no teto, uma mão também gigantesca, metal quase dourado, com muitas letras penduradas, sugerindo o diálogo entre o cérebro e as mãos humanas. Diálogo que fazemos durante toda a nossa vida. O poder da razão sobre o movimento que nos impulsiona.
Afora a obra de Plensa, na verdade, ainda não encontrei a nova estética, ou a revolução da arte contemporânea, tudo muito fugaz e descartável, nada do novo anunciado, onde se perceba a eternidade do belo, da crônica de uma época atravessando os tempos. Todas as obras expostas entrarão em entropia, enquanto os renascentistas permanecem intactos em sua beleza, na Galeria Uffizi, em Florença, contando com muita beleza para todos nós, seus usos, costumes, religião, política, diferenças de classe em que viviam, verdadeiros cronistas de sua época, sem o desgaste das obras.