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Natal de supermercado

Por Luiz Ernesto Wanke – Nosso supermercado do bairro não merece o superlativo. É um bom mercado, vá lá, tem açougue, padaria e tudo mais que se precisa para as necessidades básicas. Tem até um caixa eletrônico que nos salva porque é o único posto bancário do bairro, mas o gerente anda falando em retirá-lo por causa das explosões com dinamite que tem acontecido na cidade para rouba-los.

Por isto me surpreendi quando um dia desses, ao entrar pela porta, vi lá na lateral, bem no fundo do saguão, um Papai Noel abandonado, sentado numa cadeira velha e, principalmente, sem crianças ao redor. Ora, um velhinho sem crianças não faz sentido, é melancólico e triste. Reparei mais e o achei meio esquisito, diferente, com uma barba metade branca e metade natural, vestimenta puída, certamente de outros carnavais, ou melhor, de outros Natais e absurdamente calçando tênis também velhos. Tão mequetrefe que ninguém se importava com ele.

Reparei mais e vi que não estava confortável naquela cadeira dura. Provavelmente ficara ali o dia inteiro e visivelmente incomodado, mexendo-se e procurando uma posição melhor. Seu semblante de longe não correspondia a um distribuidor de felicidades. Fiquei triste por ele.

Fiz minhas compras e me coloquei no final de uma fila miserável de grande. Sabe como é esse aperto de final do ano quando o pessoal está com dinheiro no bolso por causa do décimo terceiro. Ninguém gosta de esperar, mas dizem que as filas são uma imposição democrática e quem sou eu para reclamar.

Pelo ‘rabo’ dos olhos fiquei espiando o Papai Noel, impassível na sua solitária invisibilidade no meio daquela gentarada. Não sei como, ele me viu – ou eu entendi assim – e eu interpretei no seu olhar triste uma atitude solidária de dois infelizes.

Assim esperando, num lapso de tempo lembrei-me dos Natais da minha infância, quando antes da hora ficávamos todos concentrados numa sala de porta de vidro fosco ansiosos pela chegada do ‘velhinho do Natal’ que era como nós chamávamos o dito cujo naqueles tempos. Enquanto víamos o vulto da mana Rose arrumando a árvore e os presentes, cantávamos ‘Noite Feliz’ e fazíamos orações em homenagem ao nascimento de Jesus.

Num repente, um estrondo: era papai jogando com força no chão as castanhas e nozes e em seguida o barulho das venezianas sendo abertas. Este ato teatral representava para nós crianças, a simulação da passagem do velhinho que teria mais coisas para fazer nessa noite do que ficar entregando nossos presentes e ainda, atrapalhando seu trabalho tão importante, comendo e bebendo adoidado.

Finalmente cheguei ao caixa e o Papai Noel continuava a olhar para nosso lado. Ansioso, arrisquei um pedido, gritando para ele:

– Não se esqueça de mim!

Mas o velhinho ou não ouviu ou estava tão distraído e não se ligou que meu brado era para ele. Olhei para trás e os desafortunados dos meus sucessores de fila olharam-me soturnamente. A caixa fez uma careta certamente de desaprovação pela minha gritaria. Dei uma ‘bola fora’, pensei. Naquele instante pareceu que apagaram a luz e todo o mercado escureceu. Mas logo me recompus, já que tinha deflagrado um vexame, tinha o direito constitucional de ir até o fim:

– Não se esqueça de mim! Repeti gritando a todo pulmão.

Não é que a luz voltou de uma forma resplandecente? A sala ‘se iluminou tal como a luz de um refletor’ como diria o poeta. A loura que estava nas minhas costas sorriu numa atitude compreensiva e o gelo se quebrou. O resto da turba começou a festejar, concordando com meu pedido e fazendo comentários a respeito do Natal.

Num repente e não sei como, instalou-se o chamado ‘espírito do Natal’.

Logo o tal Papai Noel se viu rodeado de fregueses. Até apareceu não sei de onde, uma menina que pulou no seu colo. Juro que vi uma senhora largar de suas compras e sair no saguão conversar com o bom velhinho.

Depois de pagar minha conta também passei por ele. Mas o velhinho estava tão ocupado distribuído balas e aconselhando a menina que nem ligou meu ‘tchau, Papai Noel!’

 

O autor é escritor com quatro livros de História publicados e um de ficção, O Gênio que Escrevia com Números.

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Divindades de lixo feitas na África mostram um continente em agonia

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As divindades agonizantes criadas pelo artista e fotógrafo, Fabrice Monteiro, nascido em Benin (África), de mãe belga, denunciam a grave poluição do continente africano por intermédio da poética artística. A África, assim como a Ásia, são depósitos clandestinos da grande quantidade de lixo produzido no mundo globalizado.

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Alegorias

Alegorias da Grande Mãe em Farrapos, Vênus dos Farrapos dos Pobres, são algumas das fotos contundentes  que em outubro foram expostas no Museu de Arte Moderna de Louisiana, EUA.  Monteiro para criar o ensaio fotográfico se uniu a designer de roupas  Dously e a ONG Ecofund. O projeto foi chamado de The Prophecy, e a série foi fotografada em dez localidades no Senegal.

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Deusas do futuro

A probabilidade de serem as deusas do futuro é muito grande. São cobertas  com trajes parcialmente feitos de lixo e detritos que interagem com uma paisagem poluída. As roupas foram construídas com os próprios materiais encontrados no local, o que dá uma ideia da sujeira em que se encontravam os espaços antes das fotografias serem realizadas. Para compor sua obra, Monteiro juntou os pedaços de um mundo em agonia.

Fabrice Monteiro não é o único artista africano a denunciar a poluição na África. Antes dele, outro artista africano,Pascal Marthine Tayou, nascido na República de Camarões, que hoje vive na Bélgica, elevou o plástico à nobreza de uma instalação. Participou de diversas bienais no mundo e no Brasil, na 25a. Bienal aguçou a curiosidade com a obra feita com casinhas de cachorro, referindo-se aos desabrigados da marginal Tietê.

Olhar Crítico

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As fotos de Fabrice Monteiro colocam em pauta um assunto grave e com poucas soluções práticas. Há décadas, a destinação clandestina do lixo tóxico feita pelos países do primeiro mundo está sendo denunciado, assim como as consequências na saúde das populações que vivem lá. A internet está para provar, considerando a infinidade de matérias tratando do problema. Nada mudou em comparação com o passado colonialista, em que países como a França, Itália, entre outros, dominavam os povos.

Com poética a arte apresenta a realidade do século XXI:  da dimensão em que o fantasma do colonialismo ainda persiste e persegue os confins do terceiro mundo. Hoje, no planeta globalizado o domínio do colonizador está travestido de democracia  sob a bandeira obscura que trêmula em nome da liberdade.

https://www.youtube.com/watch?v=a2ziYG72pQQ&feature=share

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Luz e sombra fazem a performance para Antony MacCall.Curitiba

O Palacete dos Leões é cenário de fundo para as esculturas de luz do artista inglês Antony MacCall, que hoje vive e trabalha em Nova York. O artista cria fachos de luz planos, curvos, cônicos que delineiam de acordo com a posição do observador em novas formas e volumes atravessando o espaço expositivo completamente escuro. Entrar na instalação You and I, Horizontal II, 2006, da Bienal Internacional de Curitiba, no palacete antigo é  suspense, para se deparar com a “pura escultura”, como define o artista sobre sua obra.

MacCall é antes de tudo um pesquisador e se inscreve no âmbito da Expanded Cinema (Gene Youngblook – primeiro livro que considerou o vídeo como forma de arte) que, nos anos 70, colocava em questão a sétima arte como simples forma de narração, para investigar os seus elementos constituídos.  As esculturas de Luz de MacCall seduzem o observador. Elas transcendem a pura dimensão estética para se transformar numa experiência sensorial vivenciada de acordo com a percepção do observador.

O primeiro trabalho consagrado do artista foi em 1972, quando ainda vivia em Londres e convidou 15 fotógrafos e cineastas para registrar sua própria imagem numa extraordinária instalação. Um par de grandes espelhos funcionava como fronteira naquele território iluminado por luzes de projetores em que os convidados se moviam sobre papel de jornal amassado no chão. Uma galeria em São Paulo recebeu essa instalação Circulations Figures no ano passado.

 

 

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Uma pequena história sobre o Pinheiro do Paraná

Meu pai fez parte da história do Paraná, Sul do Brasil. Ele presenciou o auge do ciclo da madeira e a decadência das serrarias que tiveram que fechar suas portas, nas décadas 50 e 60, quando a matéria-prima – o pinheiro  (Araucária angustifolia)– começou a diminuir no Paraná.

Sempre que tinha oportunidade Egon Weigert retirava as lembranças lá do fundo de sua mente e as colocava numa roda de filhos e netos, em volta da mesa.Todos escutavam atentamente e seguiam o seu raciocínio que se perdia nos detalhes das aventuras de um tempo de exploração em nosso estado, em que a lei era a força, a ignorância e a violência.

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Acervo Luiz Ernesto Wanke – Vejam só: achei este postal (ou meu filho Marcos) no meio de muitos ( na Fígaro). É da Serraria Olinda de Ponta Grossa, que ficava na Ermelino de Leão. Meu avô materno Theodoro Klüppel (1869- 1913) está em cima das toras.

Papai trabalhou 20 anos na serraria que meu bisavô fundou – Theodoro Klüppel – no município de Ponta Grossa: Indústrias Olinda. Uma empresa que começou pequena e com o passar dos anos expandiu-se e transformou-se numa sociedade anônima. Mas da mesma forma que cresceu, foi ao topo, no final da década de 60, por falta de estrutura e má administração não sobreviveu ao período de escassez da matéria-prima.

Entre uma briga e outra com os sócios, pois meu pai queria a parte dele para refazer sua vida em Curitiba, escutou de seu padrinho e tio o conselho de fazer “uma sopa com as ações”da indústria,considerando que elas não valiam mais nada.

A história da indústria Olinda, aliás é o nome da última filha do meu bisavô Theodoro, teve seu auge em exploração do pinheiro do Paraná lá pelos idos de 1945. É bom fazer um adendo em relação ao fato “explorar”. Quero deixar aqui “minha culpa ancestral”, e confessar que sinto uma dor no meu coração em saber que minha família fez parte da história da quase extinção da nossa árvore símbolo. Prometo que me penitenciarei pelo resto de minha vida em pagar o pecado dos meus antepassados, escrevendo a história e a importância dessa bela e imponente árvore, a Araucária angustifolia!

A indústria tinha uma filial, a Serraria Santa Adelaide, instalada no município de Moquem, em Imbituva, no interiorzão do Paraná. Nesta época, a indústria tinha comprado um pinhal nesta região, que deveria ser explorado em 10 anos. Na década de 40, as serrafitas cortavam dúzias de tábuas por dia. Segundo meu pai, os pinheiros eram apenas aproveitados nos primeiros sete metros de tora, os galhos e a ponta ficavam apodrecendo no mato.

Mas a etapa mais tumultuada da história começa quando acaba os pinheiros em Imbituva. A Serraria Santa Adelaide foi transferida para Pitanga e neste município foi comprado um pinhal no imóvel Boaventura. Se muita gente não sabe, essa região do Paraná era quase um cenário dos filmes antigos de bang-bang americano, naquela época.

O Boaventura foi um dos maiores grilos de terra do nosso estado (quando diversas pessoas se apossam da terra e existem vários documentos de compra e venda falsificados). Este grilo levou quase 100 anos para ser regularizado. Eu cheguei a presenciar parte desta regularização como jornalista da Governo do Estado.

Meu pai já contava que áreas de pinheiros, no imóvel, eram vendidas a três ou mais pessoas ao mesmo tempo. O roubo de madeira era constante e se desenvolvia um círculo vicioso. Todos se achavam no direito de derrubar as árvores. A disputa acontecia no momento do corte da madeira. Enquanto uma serraria cortava os pinheiros e estaleirava as toras no mato, para mais tarde transportá-las em caminhões, outra serraria rival, que também tinha pago pelo pinhal, roubava as toras cortadas. Assim, entre ameaças e brigas, o roubo era intercalado entre uma área e outra.

Isso sem contar os tiroteios. Um dos sócios, o mais velho deles, foi protagonista, por acaso de um destes tiroteios. O fato aconteceu porque um grileiro de terra que vivia na região atormentava os posseiros que viviam no imóvel, tirando-lhes a terra e os pinheiros.

Certo dia, os posseiros se reuniram para preparar uma emboscada e matar essa pessoa. E conseguiram. Porém, exatamente neste dia o sócio de meu pai, precisou levar a filha grávida ao hospital e foi obrigado a passar pelo local da emboscada. Só não saiu ferido porque foi ajudado por amigo. Mas, depois que o susto passou a história da aventura foi contada durante anos, com brilho nos olhos e paixão pela emoção vivenciada.

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http://www.conifers.org/ar/Araucaria_angustifolia.php

Dessa forma, as famosas matas pretas, as florestas de pinheiros, foram sumindo da paisagem paranaense. Antes cobriam parte total do território. Hoje, o Paraná tem menos de 2%. São chamadas matas preta porque se destacam pela cor escura do verde visto à distância.

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Pinheiro do Paraná – Egon Weigert – Década de 90

O Paraná perdeu a beleza de suas matas e meu pai perdeu dinheiro e ganhou lembranças. Como tributo a esta árvore magnífica passou os últimos anos de sua vida pintando telas que tinham sempre, como cenário de fundo, o pinheiro do Paraná….

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IMG_5938Hoje, em Curitiba conseguimos ver alguns pinheiros perdidos pela zona urbana. São proibidos de corte e sofrem o impacto da poluição viária, no entanto, permanecem impávidos e imponentes com sua copa em forma de taça, aberta para o céu.