Foto via site: sonhodeturista.blogspot.com.br

Um deserto estrelado e sua beleza invisível

Quando lembro do Saara  à noite, onde a única luz que existe é das estrelas no céu, fico imaginando o inconsciente como a misteriosa escuridão do deserto, o invisível, o não dito….

No ano passado tive a oportunidade de ir até o Marrocos encontrar com um amigo que lá morava. Uma das mais belas e inusitadas  paisagens que ficará para sempre em minha memória, foi do céu estrelado na noite em que acampamos no deserto do Saara.

Estávamos num acampamento em que tinha luz artificial e uma estrutura toda montada no meio das dunas para turistas. Então resolvemos andar e nos distanciar para poder ver as estrelas “no meio do nada”.

Andamos em direção da escuridão, algo fácil de se fazer, pois em poucos minutos e em poucos metros de onde estávamos instalados, já não enxergávamos “um palmo de nossos narizes”.  Há pouco minutos do acampamento já não tínhamos luz e nenhum barulho, além de nossas próprias vozes, que pareciam ecoar de forma diferente aos nossos ouvidos. Por um instante, podíamos escutar e observar claramente o som de nossas vozes. Não sei explicar, mas era diferente.

Um momento único em nossas vidas

Deitamos na areia congelante, já que estávamos no fim do inverno. E aquele momento, posso dizer, se tornou único em nossas vidas. Nos distanciamos um pouco um do outro. Estávamos em quatro pessoas. Queríamos realmente que aquele fosse um instante singular e solitário.

Quando deitei, fiquei em silêncio e olhei para o céu…

– Ahhhh!  Como gostaria de ter a imagem deste momento em uma foto…

– Nossa! As estrelas brilhavam como nunca. Parecia que em nenhum momento tinha visto o céu daquela forma. Tive a impressão que aquele não era o mesmo céu que eu podia ver em qualquer outro lugar. E de repente, me senti como na história do “Pequeno Príncipe”, no trecho onde ele conversa assim com o aviador:

“- O deserto é belo – acrescentou…

Era verdade. Eu sempre amei o deserto. A gente se senta numa duna de areia. Não vê nada. Não escuta nada. E, no entanto, alguma coisa irradia no silêncio…

– O que torna belo o deserto – disse o pequeno príncipe – é que ele esconde um poço em algum lugar.

Fiquei surpreso por compreender de repente essa misteriosa irradiação da areia. Quando eu era pequeno, habitava uma casa antiga, e diziam lendas que ali fora enterrado um tesouro. É claro, ninguém jamais conseguiu descobri-lo, nem talvez mesmo o tenha procurado. Mas ele encantava a casa toda. Minha casa escondia um tesouro no fundo do coração…

– Sim – eu disse ao pequeno príncipe – seja a casa, as estrelas ou o deserto, o que faz sua beleza é invisível!”

Sim, eu concordo com o poeta*, a beleza toda estava no invisível. Naquele momento em que eu estava me sentindo em outra dimensão. O misterioso habitou em tudo que eu era.

Foram minutos que não sei estabelecer em quantidade, pois era frio e escuro demais para me manter ali muito tempo. Mas foi um período suficiente para me fazer pensar que, ao mesmo tempo que somos pequenos diante da imensidão do universo, da imensidão de tudo que nossos olhos alcançam e são incapazes de alcançar ou invisíveis às nossas vistas, também somos grandes. Somos gigantes em nossa psiquê, nos processos psíquicos que podem ser conscientes e inconscientes.

Fico imaginando o inconsciente, como a misteriosa escuridão do deserto, o invisível, o não dito. Como num sonho em que eu corro atrás de algo e não consigo alcançar.

Contudo, como no deserto à noite, em que pude ficar serena deitada observando a beleza das estrelas, também poderia não ter desfrutado daquele momento se tivesse pensado nas serpentes que ali podiam habitar.

Talvez nossa psiquê seja assim, ela nos aterroriza com medos, tristezas, angústias, enfim, com todos os sintomas possíveis para atrapalhar o percurso da vida, mas também pode ser um lindo tesouro de aprendizado, amor e felicidade.

Não é simples e nem fácil, mas é possível fazer dela, aquilo que habita de melhor dentro de nós.

 

*SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. São Paulo – SP: Ed Escala, 2015.

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Uma breve crônica sobre os pés

Encontrei uma foto no Instagram que me colocou a pensar...era um sapato com dentes.

Segundo o artista, (thedoorspellingthefloor) ele é um sapato de dentes, cantando. Acho o máximo o que a arte pode fazer dentro da gente. Apesar do sentido que o artista deu para sua produção, a minha elaboração foi bem diferente.
Me peguei pensando que por muitos anos da minha vida era necessário fechar os meus pés dentro de um sapato, munido ainda de uma meia para mantê-los aquecidos. A “meia era um meio” entre os meus dedos, que ficavam presos, além da minha pele que se descuidasse, criava fungos mal cheirosos gerando frieiras e chulé. Era necessário, após o banho tirar toda a umidade e muitas vezes usar um talco antisséptico para colaborar neste processo todo e para reforçar em invernos rigorosos, ainda fazia o uso do secador de cabelo para garantir a retirada da umidade entre os dedos. Uma rotina bizarra das pessoas que moram em Curitiba e que passa desapercebida, sem nenhuma importância a ser registrada.

Por outro lado, este “sapato de dentes, cantando” me fez refletir, o quanto tudo isso passou ser diferente na minha vida.

Quando cheguei em Natal, toda esta “bizarrice” para os cuidados dos pés deixou de existir na minha vida. Nos anos que trabalhei em empresa percebia as mulheres chegando para trabalhar de chinelos e só vestindo seus sapatos de salto altos ou sandálias, quando chegavam dentro do ambiente laboral. Eu mesma, passei a usar sandálias, sapatos abertos ou sapatilhas frescas e bem confortáveis

https://www.instagram.com/thedoorspellingthefloor/

Mas meu principal “meio de transporte” para os pés sempre foram os chinelos. Em 10 anos que moro no nordeste usei mais chinelo do que todo o resto da minha vida…e olha que já cheguei aos 40. Com certeza não usei tanto chinelo nem na minha “infância gelada”.
A vida no nordeste para mim passou a ter uma leveza diferente. Me embalo na rede, sinto a brisa do mar e tenho o privilégio de um pedacinho da vista do mar de todas as janelas do meu apartamento. Me separei daquilo que me desgastava, fiz escolhas para ter qualidade vida e os sapatos ou chinelos para manter em liberdade os meus dedos dos pés, também fazem parte disso.
Tudo ou apenas isso, me faz pensar no quanto era assustador me dar o direito de concretizar os meus sonhos, como por exemplo morar na praia, fazer uma viagem deliciosa, trabalhar naquilo que sou apaixonada e ainda escolher os horários que eu quero para me dedicar às minhas atividades. Aposto e apostei no meu DESEJO, ele tem “movido montanhas” na minha vida. Mas na minha trajetória só pude me dar conta disso no meu percurso de análise, no “meu divã”.
Então que venha a “liberdade dos meus pés”, a cada dia mais, que venha a qualidade vida!

Cícero Dias - Pai e Filho

A letra e o sintoma…Uma história de pai e filho

Era uma vez um menininho e seu pai...

Seu pai o fazia estudar, mas ele não conseguia ler os textos que eram para aquela criança, tão cansativos ao seu olhar. Aquelas letras eram sempre incompreensíveis para o menino que apesar de frequentar a escola, se sentia um “burro”.
O tempo passou, o menino se tornou um homem e entendeu que na verdade era a letra do seu pai que ele não entendia. Ele queria atender aquele desejo, entender das letras, entender das palavras, entender dos sentimentos do seu pai, ele queria falar a língua do seu pai. 
Um pai que exigia que seu filho fosse um bom aluno na escola e tirasse boas notas.
Mas o menino não entendia. Ele não entendia as letras, as palavras não formavam frases e não faziam sentido nenhum. Era como se ele estivesse buscando nos ensinamentos da escola o que seu pai queria tanto dele naquela cobrança incessante do dever de ser um aluno exemplar.
As letras eram para o menino o que seu pai queria expressar, no entanto, era incompreensível. E como compreender o impossível?
O menino então aprendeu a ler outro texto nesta relação de amor com seu pai. Aprendeu a ler as letras que formavam outros tipos de palavras nesta comunicação de pai e filho. Aliás, ele percebeu que esta comunicação ele já compreendia muito bem há muitos anos. Ele tinha o mesmo problema de saúde que seu pai. 
A falta de ar era a forma de entender o que seu pai queria expressar. O sintoma eram as letras que formavam as palavras do impossível de se dizer. 
Ele tinha falta de ar, mas esta doença o bloqueava a vida, limitava a compreensão de novas palavras, já que faltava o ar e desta forma não podia expressar, não podia ler as letras e consequentemente nunca as poderia entender aquilo que estava escrito.
Pai e Filho - Cícero Dias
O tempo passou, seu pai morreu de falta de ar e o menino que agora era um homem, o que fez então?
Resolveu se livrar daquilo que seu pai tinha e ele tinha pegado emprestado para entender a vida. Queria viver diferente de seu pai, aliás queria viver muito mais do que ele que deixou a vida muito cedo, morrendo sufocado por palavras, sentimentos e doença. Não queria sufocar com as palavras, com os sentimentos, com a vida e muito menos com uma doença.
Descobriu, por fim, que a falta de ar não era mais necessária, já não podia mais se comunicar com seu pai e se pudesse não seria mais com a falta de ar. Aprendera a ler outras letras, outras palavras e agora sim o texto da vida fazia sentido.,
Contudo, é possível se desfazer daquilo que não é seu, daquilo que foi lhe dado, emprestado, herdado nas relações de amor, mas que nem sempre nos fazem bem. É possível, sim, seguir em frente com suas escolhas e de forma saudável, mas nem sempre é fácil e se consegue fazer sozinho. 
Fazer esta caminhada para ter qualidade de vida sozinho, muitas vezes é possível, mas do contrário é importante se autorizar a fazer algo a mais por si. Oferecer-se a possibilidade de se cuidar e se tratar é um ato de coragem e para isso muitas vezes faz-se necessário o trabalho de um profissional.
De qualquer forma, toda trajetória que vise a tranquilidade, a saúde física, psíquica e espiritual vale a pena!
A vida e a morte  Gustav Klimt - 1916

Doces lembranças na despedida

No meio de tantas notícias ruins, a pandemia também tem trazido momentos interessantes. É irônico dizer, mas fico feliz por meus avós não fazerem mais parte desta vida.

Viver o isolamento social, seria algo tão difícil para eles que precisavam tanto dos familiares por perto.Pensando nisso, me lembrei da morte da minha avó, que como toda perda de alguém que amamos foi triste, mas que gostaria de contar um pouco aqui, pois por mais estranho que pareça, me recordo dando risada.
 
Minha avó materna esteve anos adoecida com mal de Alzheimer. Quando foi diagnosticada com a doença foi muito triste para todos os filhos e netos. Sua memória sendo apagada tornava a convivência com a perda, morte e luto a cada dia, por anos de nossas vidas. O medo também fez parte de nossa caminhada por um tempo, medo de vermos nossos pais repetirem este diagnóstico ou mesmo nós os netos, sendo marcados por este destino assustador em um futuro.
Mas enfim, a morte propriamente dita efetivamente chegou. O dia que recebi a notícia do falecimento de minha avó , estava em uma conexão, no meio do caminho para minha cidade natal. Tomando um café com pão de queijo no aeroporto, chorei sozinha naquele momento e me senti muito solitária. Desejei estar perto da minha família.
Enfim, de certa forma, foi um misto de tristeza, mas também de alívio por saber que minha avó querida não estava mais presa naquele corpo e cérebro que não tinham mais suas funções adequadas para viver e a família que sempre foi muito unida, tinha se tornado um caos nas relações.
Estávamos tristes pela forma como tudo que tinha acabado. Com esta doença, não só a vida da minha avó foi terminando, mas também a união da família foi colocada em “xeque”. Porém, a questão mais estranha que aconteceu, que me fez escrever esta crônica, foi o dia do seu velório e consequentemente o enterro.
O velório como todos, acabou sendo um evento de família, onde pude encontrar tantas pessoas que há tempos não via. Quando olhei para minha avó no caixão, assim como o momento de despedida, antes do enterro e o próprio enterro, me causou uma grande dor. Chorei imensamente, chorei a tristeza de saber que há anos já não tinha minha querida e alegre vó, chorei por saber que nunca mais poderia abraçar e sentir aquele cheirinho delicioso que só ela tinha no aperto de nossos corpos.
Mas por outro lado, os demais momentos do velório foram de muita conversa e em quase todas as horas que lá estivemos, além das conversas muitas lembranças, piadas regadas com muito riso  e até com direito a gargalhadas entre primos, tios e familiares próximos. Disfarçávamos para manter a postura diante de conhecidos que chegavam para dar os pêsames, já que a morte para todos queria dizer algo muito triste.
O dia passou, o enterro aconteceu e naquele dia também estava marcada a comemoração do aniversário da minha tia. Resolvemos manter o evento, que incluía apenas os familiares próximos.
Apesar do momento de despedida triste sabíamos que aquele dia era esperado e minha tia merecia uma comemoração.
Nos reunimos mais tarde e o mais engraçado foi quando minha mãe disse: “Gente podem tirar fotos, mas não postem nada hoje nas redes sociais…” Tínhamos feito postagens de aviso da morte da minha avó nas últimas 24 horas e agora íamos postar fotos comemorando? Um tanto estranho para uma sociedade que julga sem saber o que está acontecendo de fato.
Enfim nos divertimos, rimos e brindamos o aniversário, mas também o adeus de minha querida avó que já estava cansada de viver daquela forma.
Errado ou certo, não sei dizer o que é. Para nós foi um momento lindo, divertido e emocionante. Foi necessário e verdadeiro. E sabemos que se ela estivesse junto, estaria rindo conosco.
 
Contudo, é com a ternura do amor e respeito que sempre tive pela minha avó que termino este texto e com o qual deixo também este respeito a um mundo inteiro que sofre suas perdas, sejam elas quais forem.
Que os dias estranhos em que vivemos, sejam ressignificados e cada um possa encontrar a força naquilo em que mais acredita para atravessar esta etapa.