foto by Jaqueline D'Hipolito Dartora

Biblioteca musical – quando um país sabe o valor da cultura

Já imaginou uma biblioteca voltada somente para a música e os estudos musicais? Já imaginou um lugar onde as pessoas que não tivessem recurso pudessem aprender um instrumento musical, o solfejo, e emprestar partituras, biografias de músicos. Não é um sonho!

Esse lugar existe… está no centro Madrid e é dele que eu quero falar.

Epilogo

Já faz um tempo que venho pensando em estudar piano. De todos os instrumentos musicais, o piano quem sabe é o que eu mais gosto e aprecio. Deve ser porque na minha época de bailarina todas as aulas eram acompanhadas de um professor de piano. Que delícia!

Não faz muito tempo conheci um professor de piano, e começamos a falar sobre a possibilidade de eu aprender esse instrumento. O caso é que não tenho piano, nem dinheiro, nem lugar para colocar um. Em 40 metros quadrados fica muito difícil encontrar um lugar onde caberia um piano.

Quando conversamos, me disse que quem sabe poderia começar as aulas e treinar ou na sua escola ou na Biblioteca Musical. Fiquei boquiaberta. Biblioteca musical?! Como assim?! E eis que em Madrid existe uma tal “Biblioteca Musical”. E eu que sou uma rata de biblioteca, que ando entre uma e outra passando as minhas tardes e emprestando livros, nunca soube desse fato.

Que curiosidade mais grande se abriu diante de mim. Ainda mais quando descobri que a biblioteca musical ficava do lado do cinema onde sempre frequento. Um fato como esse não podia deixá-lo de lado. Comecei a investigar tudo sobre a Biblioteca… onde ficava, horários, o que oferecia e cada vez mais o meu espanto aumentava. Como a biblioteca não abria nos sábados e domingos, programei a minha visita uma sexta feira de tarde, depois do trabalho, para ver como era e como funcionava.

 

História

 

A “Biblioteca Circulante Musical”, seu nome original, nasceu como uma instituição paralela a “Biblioteca Circulante Literária”. Esta foi criadas em 1914 pelo diretor de Investigações históricas Ricardo Fuente Ascênsio como forma de promover a formação de novas instituições culturais que colocam os livros no alcance da cidadania.

Nesse contexto de renovação cultural, aparece Víctor Espinós, musicólogo e musicógrafo espanhol,  que começa a trabalhar na Biblioteca Circulante Literária em 1918 e logo em seguida, somente um ano depois de estar alí, apresenta seu projeto para a criação da Biblioteca Circulante Musical. Seu objetivo, como relata a própria biblioteca, era claro: uma biblioteca musical colocaria nas mãos das pessoas com escassos recursos econômicos páginas de papel pautado que fariam esquecer a rudeza de uma vida dura.

Essa biblioteca contaria com duas seções oficiais: uma com intuito didático, dedicado ao aprendizado e aos métodos de ensino; e outra, com o empréstimo de obras para os que já tinham conhecimentos suficiente para executar um instrumento.

Para isso contou com a doação e a generosidade de muitos amigos, músicos, filantropos que ajudaram a compor o acervo, assim como ajudas Estatais para a sua manutenção. Eis que em 1919, a prefeitura da luz verde para a concepção com a assinatura do Decreto de 27 de outubro.

 

 

 

Empréstimo de Instrumentos

Quem seja que leia esse intertítulo deve estar alucinando. Mas não é brincadeira não. A Biblioteca Musical dispõe de um serviço de empréstimo de instrumentos musicais, um serviço pioneiro na Europa e que existe desde 1932.

O serviço de empréstimo de instrumentos musicais parece que nasceu no mesmo momento que tiveram a ideia da biblioteca musical, porém foi procrastinado por várias circunstancias, sendo efetivado em 1932… completamente gratuito ao público, com vigência de um ano, sendo que a cada oito dias o aluno deve apresentar o instrumento para uma inspeção do mesmo.

Sala de ensaio

Como eu disse, isso não é uma biblioteca corrente. Nela se dispõe de salas reservadas para os que estão aprendendo algum instrumento musical ensaiem. Parece loucura, mas se buscarmos no nosso interior, ou mesmo etimológicamente, a função de uma biblioteca, chegamos à conclusão que a parte de ter um serviço de empréstimos de livros, sua outra função é dispor de um espaço tranquilo para estudar, sem interrupções.

Eis que estudar música, sem dúvida requere de um lugar onde emana silencio, e onde um pode manter a sua concentração sem interrupções. Por isso existem as chamadas “Cabinas de ensayo”.

O serviço foi criado em 1933 e é um dos mais singulares da biblioteca. Quando Victor Espinós organiza o empréstimo de instrumentos, também pensa em criar um espaço para poder ensaiar dentro da biblioteca. Nos primeiros anos dispunha de quatro pianos em que os estudantes podiam praticar uma hora e meia em dias alternados na semana.

Nos anos 60 se cria umas mini salas individuais em que se podem reservar horário e dispor de uma hora, ou uma hora e meia para estudar. O serviço se inaugura graças a diversas doações e nos anos 90 se instalam as 10 primeiras salas e os primeiros pianos adquiridos mediante a compra, oferecendo aparte das salas para estudar, outros tipos de instrumentos que eram emprestados na própria biblioteca para que pudessem se utilizados ali. E para completar existe uma sala de ensaio para grupos de câmara que querem ensaiar em conjunto.

100 anos da Biblioteca Musical

Esse acho que é um dos fatos que mais me surpreendem. Essa biblioteca acaba de completar 100 anos no ano de 2019, o que quer dizer que ela foi fundada numa época na qual em muitos países e incluso na Europa a educação não era um tema prioritário. Saber que Espanha se posicionava na elite da cultura promovendo tal ação me enche de orgulho e satisfação.

Estamos falando de uma época entre guerras, marcada pela miséria, mas também de vanguarda histórica e movimentos. Se nos lembramos de todas as correntes artísticos literárias que emergeram nessa época, somadas ao sufrágio feminista, podemos chegar à conclusão que nos países mais preocupados com o progresso social, a educação começa a ganhar relevância.

E no meio da miséria ocasionada pela I guerra Mundial, podemos ver uma ponta de esperança quando ideias como esta, a Biblioteca Musical, começa a ganhar relevo e proporciona meios educacionais para aqueles que nunca tiveram oportunidade de ver o que era um instrumento musical.

Espanha não participou da I Guerra Mundial mas lembremos que em 1933, justamente quando essa biblioteca começava a ganhar reputação,  se desencadeava a guerra civil, que acaba por levar os pobres a miséria extrema.

É um tanto paradoxo, mas o certo foi que durante todo esse período a Biblioteca resistiu, e nem um governo nem outro derrubou as paredes que outrora foram construídas. Quem sabe isso seja um sinal de esperança. Quem sabe a sua sobrevivência tenha sida um símbolo de protesto silencioso. Porque todos sabemos que a verdadeira revolução, é aquela que se faz em quatro paredes, com os cotovelos em cima da carteira e um livro aberto.

Um povo instruído leva a pequenos atos de progresso social, e sem a necessidade de destruir o sistema, um povo letrado é capaz de lograr como se diz aqui, passinho a passinho, que verdadeiras mudanças estruturais sejam feitas. Essa é a história da Europa. Ou parte dela. Não vamos negar que muito sangue foi derramado. Mas também é certo e não podemos negar que muita coisa foi construída com base na educação do seu povo. E isso muitas nações que compõe esse continente souberam ver. Sem grandes discursos, sem afã de mudar o mundo ou revolucionar a história, a criação dessa biblioteca é um símbolo lindo sobre os pequenos atos que fazem grande diferença.

 

 

 

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A geração de Guernica

Escrevo essas linhas depois de ter visto o documentário “La generación de Guernica” 13 anos após ter visto esse filme pela primeira vez ao chegar na Espanha, para estudar. Nessa época me empapava de todos os filmes, músicas, documentários e notícias que viessem em espanhol como forma de aprender o idioma. Ia todos os dias a biblioteca emprestar DVDs e livros que contassem um pouco da história do país, que então era meu destino de estudo e que, hoje, acabou se tornando a minha casa.

Hoje, o coração me pesa… e com esse pesar sinto que tenho que escrever sobre esse documentário que tanto me impactou, e que com certeza impactará os mais sensíveis. Mas não quero escrever sobre ele por uma pieguice sem sentido, um sentimentalismo barato; senão porque sinto a necessidade de contar uma história triste e recente do passado dessa terra, que acabou tendo consequências para muitos outros países. Porque essa história jamais deve ser esquecida.

A geração de Guernica foi um documentário realizado pela televisão Basca. Retrata a história das crianças que foram enviadas a vários países pelos seus pais, depois dos bombardeios da cidade Basca de Guernica pela Legião Condor de Hitler, em apoio ao General Franco. Esse bombardeio teve como objetivo, de um lado, testar os armamentos alemães para a sua guerra, e de outro atacar uma das cidades consideradas fontes de resistência da Guerra Civil Espanhola.

O documentário oferece testemunho dos que na época eram criança e tiveram que abandonar os seus pais, as suas famílias, e o seu país para estar a salvo de tudo que ocorria em Espanha nessa época.

Lembro-me bem de ter visto esse documentário com um amigo mexicano há mais de 13 anos, naquela sala de estar, em Pontevedra, e de ter me impactado tanto que até hoje, algumas imagens não foram capazes de sair da minha cabeça.

A guerra civil Espanhola foi um conflito que durou de 1936 até 1939 e que dividiu a Espanha. De um lado os Republicanos lutavam para restaurar a recente república que havia no país, de outro estavam os militares comandados pelo “General Franco”, que visava tomar o poder e tornar-se o chefe de Estado, levando a Espanha a uma ditadura de quase 40 anos.

Nessa época muitos pais de famílias, e principalmente depois do massacre de Guernica, sendo ou não simpatizantes republicanos temiam pela vida dos seus filhos e começaram a se organizar para enviá-los fora.

O documentário revive momentos muito duros, principalmente porque os filhos, as crianças que subiam a bordo do barco La Habana, tiveram que subir sozinhos. Estamos falando de um barco com 4000 crianças, tristes e famintas, porque nessa época a fome já tinha alcançado a muitas famílias espanholas. As crianças variavam entre 5 e 15 anos, mas muitas crianças com 4 anos e 16 também subiram, mentindo sua idade, incentivado pelos pais que tinham mais medo do que podia acontecer ali, que no país que estavam destinados. Portanto, subiram a bordo de um barco que tinha vários destinos: México, apoiado pelo então presidente Lázaro Cárdenas; União Soviética, também apoiado pelo governo Stalinista; Inglaterra e Bélgica, sem apoio governamental mas com ajuda de voluntários da Cruz Vermelha e de outras organizações não governamentais que acabaram se compadecendo do que ocorria na Espanha.

A história de exílio destes meninos não se limita ao primeiro barco que zarpou do porto de Barcelona rumo a esses países. Com o passar do tempo, foram organizando mais e mais barcos e estima-se que entre 1937 e 1938, cerca de 32 mil menores foram enviados a estes países. Todos os pais e inclusive os governos de tais países pensavam que ia ser por um curto período de tempo.  Mas a história sempre tem o poder de surpreender-nos e a guerra civil não terminou pronto, o que levou a estadia dessas crianças durar mais tempo do necessário, vivendo por anos no país estrangeiro, sendo educados ali e adotados por famílias locais.

Muitos perderam seus irmãos no caminho. Em um barco com mais de 4000 crianças era fácil que um não encontrasse mais ao outro. Outros, acabaram em destinos que não foram planejados pelos pais; crianças e família inteiras que iam a Inglaterra, acabaram se perdendo e descobrindo só anos mais tarde que o irmão acabou indo para Bélgica por engano.

Os que foram para México ficaram em Morelia, e coincidentemente quando estive ali no ano de 2009, conheci um menino que era neto de uma senhora que foi parar no México por essas circunstancias.

Depois houve os que foram para a União Soviética, em que o governo tratou de traduzir todos os livros ao espanhol e trazer professores para ensiná-los, tudo com o objetivo de educar as crianças no idioma do seu país.

Em 1939 quando acaba a guerra civil, Espanha está devastada, e Franco reclama a volta das crianças da Inglaterra e Bélgica, coisa que muitos pais se negam já que o país atravessa pela destruição, pobreza e fome extrema. Quando tudo que parece ser tão doloroso pensamos que vai acabar, a vida quer seguir dando golpes, medindo nossa resistência e vontade de sobreviver. Depois de anos, muitas crianças já não sabem quem são seu pais, muitos pais já não sabem quem são seus filhos… muitos pais acabam escrevendo aos seus filhos dizendo que fiquem onde estão, porque se regressam seriam só uma carga mais por toda miséria que estão passando.

Os que voltaram tiveram agora que enfrentar algo muito pior que a saudade e falta de cuidados dos anos vitais… enfrentam a fome. E uma fome, que como descreve um dos protagonistas, que lhe fazia comer as laranjas com pele, e o pão resseco de duas semanas. Os que ficam se vem imersos numa outra guerra, que tão só começa 5 meses depois de acabar a guerra civil: a Segunda Guerra Mundial.

Os que no México ficaram, quem sabe foram os mais afortunados de todos, já que não tiveram que passar pela guerra, mas sim de encontrar formas de sobrevivência com a mudança de governo, suas ajudas foram cortadas e muitas crianças, novamente, perderam a sua oportunidade de ser criança e tiveram que trabalhar.

Quando, por fim, a Segunda Guerra Mundial acaba muitos abraçam novas esperanças, já que Hitler e Mussolini perderam, muito provavelmente os países aliados se juntariam para tirar Franco do poder. Ledo engano. Nessa época, a preocupação deixa de ser Franco, deixa de ser o fascismo, e de repente, não mais que de repente, o mundo se volta contra a União Soviética.

E assim, com um sucesso detrás do outro o documentário “La generación de Guernica” vai compondo a vida de toda uma geração perdida; de toda uma geração assolada pelo mal humano, pela guerra e pela destruição, e desenhando a trancos e barrancos como cada um deles sai adiante, com as marcas e a cicatriz de uma infância não vivida.

De ele se pode tirar conclusões. Acho que entendo melhor muitos dos estereótipos que vejo na Espanha, seja pelo carinho e a importância que dão ao bom comer, como a importância que tem o estudo, o dormir debaixo de um teto, às ciências, à educação. Mas acho que a principal conclusão que tirei daqui é sobre o legado que queremos deixar aos nossos filhos e as futuras gerações.

O documentário toca fundo na alma, e essas linhas que escrevo contando tudo isso, o faço porque vejo a necessidade de contar essa história. Porque nos dias em que vivemos, a cada dia vejo mais pessoas com menos bagagem histórica e conhecimento dos fatos que hoje demarcam o que é Brasil, o que é Europa, o que é mundo.

Creio que há uma histeria geral por falta de conhecimento, e que hoje muitos que clamam medidas extremistas para erradicar a pobreza, a violência, não entendem nem querem entender de onde elas vêm e do porquê. Estamos perdendo a consciência do nosso passado e da nossa história; estamos esquecemos de muitos fatos recentes, fatos que definiram o seu rumo e que hoje explicam por que existem tantos imigrantes no Brasil, por que a União Europeia se formou, por que França e Alemanha que ontem foram inimigas hoje são países amigos, por que temos um estado do bem-estar, ou pelo menos, por que grande parte dos países europeus o tem?! A educação é necessária e o conhecimento é essencial para a formação de uma sociedade mais justa.

Porque, parafraseando a Guillermo Fatás, aqueles que não conhecem a sua história estão destinados a repeti-la. “La generación de Guernica” está aí para dar voz aos testemunhos de muitos daqueles que viveram nessa época e que em algumas décadas já não estarão aqui para contar esses fatos. Devemos, portanto, preservar, ver e compartir esses documentários, assim como muitos livros de história e matérias ao respeito. Devemos, nesse trabalho exaustivo, tratar de buscar a verdade, mesmo que ela seja frágil e vulnerável. Porque somente ela nos livrará dos absolutismos, dos extremismos e nos conduzirá ao futuro, ao futuro que esperamos…

Aos que desprezam a educação, aos que desprezam o conhecimento e aos que desprezam a história, lhes direi que sem ela não há possibilidade de futuro, entendendo-se futuro por um país mais honesto, mais justo, com mais possibilidades para todos.

 

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Mulherzinhas

Este fim de ano foi bastante corrido para mim; entre uma viagem e outra, não queria perder tempo para ler meus livros. Principalmente nessa época do ano me sinto muito unida aos grandes clássicos… especialmente aquele que tem cheirinho de Natal.

Desde pequena adoro o Natal. Antes gostava muito de ver toda a família reunida, com todos os primos, a casa cheia, a mesa farta e uma grande árvore montada em casa. Hoje em dia, vivendo fora, já me acostumei em reunir menos gente, ou às vezes ninguém; é certo que sempre monto minha árvore, maior que nunca, e me acostumei a fazer minhas próprias tradições natalinas que me permitem desfrutar e gozar dessa época do ano: chamo as pessoas para jantarem na minha casa, compro vinhos especiais, coloco os presentes debaixo da árvore, faço limpeza de roupa, livros e papeis todo fim de ano, me voluntario para servir jantas a famílias com menos recursos e procuro ler um clássico natalino todos os anos nessa data.

Ano passado li Contos de Natal de Dickens; esse ano foi um ano de um grande clássico que venho ensaiando anos para ler: Mulherzinhas de Louisa May Alcott. Curiosamente ano passado já pensava em lê-lo, quando saiu a edição especial do livro aqui na Espanha fui atrás e em nada estavam esgotados nas livrarias. Esse ano, como iam lançar o novo filme no cinema, acabei colocando como dever de casa ler o livro antes da estreia do filme, dia 25 de dezembro. Dito e feito…

Mulherzinha passou todo o Natal do meu lado, acompanhando-me todas a manhãs de frio e chuva que tive. Sabe aquele romance que te engancha do primeiro minuto e você não consegue parar de lê-lo até o final. Mulherzinhas é assim. Foram 350 páginas lidas a todo vapor, sem minutos de descanso. Quando estava fazendo outra coisa, lembrava do livro e instantaneamente queria voltar ao sofá e retomar a leitura.

Mulherzinhas conta a história das irmãs Jo, Amy, Beth y Meg, cada uma com uma personalidade diferente e aspirações distintas. Todas elas vivem juntas, numa casa relativamente humilde baixo a tutela da sua mãe, já que o pai estava fora lutando na guerra civil americana – embate que dividiu o Norte e o Sul do país entre 1861 e 1865. Passando por dificuldades financeiras, a mãe dessas meninas sai a trabalhar e em alguns momentos, elas são animadas a fazer o mesmo. De aí começa a história, que nada mais conta as aventuras de quatro irmãs que aspiram ser muitas coisas na vida, inclusive independentes e ser dona do seu próprio nariz.

Numa sociedade em que se educava as mulheres para casarem e terem filhos, sem dúvida, o livro de Louisa é muito progressista e extremamente feminista. Também lança algumas ideias revolucionárias; por exemplo, que as mulheres americanas, nessa época, aspiram mais a independência financeira que as europeias (dito em uma pequena passagem quando ingleses e americanos começam a competir num jogo de crianças).

As irmãs March, sem dúvida me conquistaram… principalmente Jo que queria ser escritora e independente. E Beth, com a sua bondade e amor pela música.

Tenho que dizer também que Mulherzinhas não tem um desfecho como esperamos… não é afã de fazer “spoiler”, mas esse livro é só a primeira parte da saga. E isso me deixou louca, porque quando o terminei, estava de viagem a Holanda, pensando que esse fim era meio estranho. Foi aí que, buscando na internet, me dei conta que essa era a primeira parte de dois livros. Estava fora e era incapaz de encontrar a segunda parte em espanhol para lê-lo. Pensei em comprar em inglês, mas onde eu estava também não tinha muitos livros em inglês. Que decepção!

Voltei a Madrid pensando na segunda parte do livro antes de vê-lo no cinema. E não é que não tinha. Ou você comprava “Mulherzinhas”, obra completa ou comprava só o primeiro tomo. O segundo não foi lançado. Quase tive um ataque.

Acabei indo ver o filme, e claro, um grande spoiler de toda a obra. Já me dei conta de tudo que acontece na segunda parte… aparte do fim. Sim; para os apaixonados da leitura, as vezes é muito bom ir no cinema e ver que a direção do filme foi tão bem-feita que não destripa o final. Na verdade, abre duas possibilidades e, no fim, não se sabe o que realmente passou no livro. Respirei aliviada.

A pergunta que não quer calar é: o filme é bom? Vale a pena? Eu digo que o filme é bom… para todos aqueles que leram o livro. Se você não é leitor, nem pensa em lê-lo o filme lhe deixa meio perdido às vezes. É uma narrativa de recordações, em que a protagonista, vivendo no presente, se lembra de muitas coisas do passado. Não tem uma linearidade novelesca que muitos romances de época têm.

Pelo menos foi isso que senti dos meus amigos que vieram comigo ver o filme e não leram o livro. Não entenderam muito.

Por outro lado, sempre sugiro ler o livro antes de ver o filme. Porque os personagens que se formam na sua cabeça sempre vão ser infinitamente melhores que qualquer atuação.

Certo que muitas atuações me decepcionaram, e muitos personagens não tinham nada a ver com aquilo que imaginava. Se cortaram partes cruciais do livro, dessas que lhe deixam chorando desconsoladamente… mas tive que perdoar ao diretor, já que foi um filme de natal, e, no fim das contas, nessa época a esperança renasce em nós.

Mas como não vim aqui falar do filme, senão do livro, os recomendo a todos aqueles que gostam de livros e querem ler romances com bons sentimentos, que leiam a Louisa May Alcott, que leiam “Mulherzinhas” e que se deixem levar por esse espirito de paz e esperança que nos acompanha cada começo de ano.

Feliz 2020!

 

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Férias no pedal

Qual é a sensação se eu disser que acabo de voltar de uma viagem em bike pela Holanda? O que você sentiria se eu dissesse que tive umas férias super diferente esse ano e fugi da famosa praia, amigos, cerveja e aluguei uma bike para viajar 7 dias, percorrer 360 km e conhecer lugares pitorescos, inusitados e surpreendentes?!

Pois é, passar férias sobre uma magrela quem sabe foi uma das experiências mais bonitas que tive. À parte de outras férias que peguei esse ano e tenho muita vontade de contar, mas essa quem sabe é a melhor para compartilhar e para motivar as pessoas a fazerem o mesmo.

Existem momentos, dias, recordações que só podemos levar com nós mesmos. Quando você tenta dividir essas emoções, parece que as pessoas nunca vão entender exatamente sobre o que foi, o que você viveu e o que você quer transmitir. No entanto, certos momentos são tão poderosos que você sente essa necessidade de compartilhar e de gritar pro mundo inteiro como foi e o que você viveu. Tenho essa sensação e essa vontade bastante vezes; contar um pouco dela só faz com que a minha alegria aumente, e volte a reviver certos momentos.

Também é uma forma de mostrar que existe um  turismo mais sustentável, mais devagar e sem stress. Férias no pedal permitem ver o entorno, pensar na vida, e desfrutar de uma paisagem e tempo que você não faria dentro de um carro a mais de 80 por hora. Além de contribuir com as emissões de carbono, de consumir menos (gasolina, roupa, bugiganga), você vê, observa o entorno de forma diferente.

E como eu acho que isso é uma corrente, e que gentileza gera gentileza, e que boas ideias geram outras boas ideias, venho aqui escrever sobre essa maravilhosa experiência de percorrer Holanda no pedal.

Um ano atrás a porteira do meu prédio aqui em Madri me falou que acabava de voltar dessas férias. Disse que esteve a semana inteira viajando em cima de uma bike com 4 amigas e que valia muito a pena. Perguntei tudo, e ela me passou o nome da agência de turismo… sim, foi tudo organizado (hotel, transporte de bagagem, e as bikes que já estavam esperando por ela quando ela chegou em Amersfoort). Adorei a ideia, mas sinceramente não gosto que me organizem a vida.

Dessa forma, pedi para ela a rota e tratei de montar do meu jeito todo esse tour. Em vez de hotels, aluguei quartos de Airbnb em cada cidade, mudei a rota, começando de Amsterdam e terminando ali depois de 6 dias – ou seja, viagem circular – e comecei a buscar lugares na cidade que me alugassem a bicicleta por uma semana para poder fazer a viagem que tinha planejado.

Tudo organizado, agora o negócio era a bagagem. Eu não queria que transportassem a minha mochila. Não tinha sentido viajar em bike e ter um carro detrás de mim que levasse minhas coisas. Que sentido teria fazer uma viagem mais ecológica quando sabe que vem um carro fazendo o mesmo percurso para levar um monte de parafernália de uma lado para outro. O negócio e montar uma mochilinha, e não estou de brincadeira, uma mochilinha mesmo, com o básico para esses dias.

Foram 5 quilos para ficar 9 dias na Holanda. Em pleno verão, e é certo que a roupa de verão pesa menos. Mas não podemos deixar a capa de chuva e nenhum momento. Tênis cômodos e nada de excessos e pensar em ficar lindona para sair. Isso é uma viagem de básicos. E nesses básicos incluem um kit primeiros socorros para qualquer emergência.

Depois era colocar a roupa que você já pensava em começar e mandar ver.

Primeiro dia – Amsterdã a Zandvoort / Noordwijkerhout

Primeiro dia de viagem é sempre uma surpresa. Primeiro porque você não sabe se o treino que você fez durante esses dias vai ser suficiente, se vai acontecer alguma coisa, se você vai saber andar de bicicleta de novo (vai saber, faz tanto tempo que você não treina na rua que fica com medo), e se vai ter grandes problemas em encontrar o caminho.

À parte disso, o imprevisto foi bem maior do que esperávamos. Nosso primeiro dia de viagem chegou com um tornado que passava justo por Amsterdam esse dia. Os ventos eram tão forte que conseguia parar completamente com a bike. Era horroroso. O problema é que já tínhamos percorrido 20 km quando começou. Estávamos em Haarlem, admirando os pitorescos “hofies” – jardins dos seculos XVIII e XIX que foram preservados pelos habitantes mais abastados para que as viúvas idosas pudessem trabalhar e ter ingressos e assim não passariam fome – quando a ventania começou.

Foi tudo muito inesperado, porque o último que pensamos é que poderia ventar tanto. Planejamos a viagem com chuva e com sol, mas não com vento. E muito menos com um tornado. Quando cheguei no quilômetro 40 lembro-me que comecei a chorar e  pensava onde eu tinha me metido. Não tinha para onde correr. Não havia trem, estávamos a meio caminho entre um lugar e outro. Ainda assim as paisagens eram lindas… só que não tínhamos previsto tudo isso.

Chegamos às 9 da noite na cidade e no Airbnb que tínhamos reservado. Problema numero 2: janta. Praticamente todos os lugares fora de Amsterdam não servem janta depois das 9:30.- Tínhamos que correr se queríamos pegar algum restaurante aberto. Foi possível comer alguns nachos com queijo, mas estava claro eu se queríamos que essa viagem fosse mais prazerosa tínhamos que nos organizar melhor no segundo dia.

Segundo dia – Noordwijkerhout – Haia

Bom… o dia começou já com o meu medo de ter a mesma ventania ou mais do dia anterior. Nossos anfitriões do airbnb nos disseram que o prognóstico era mais favorável. E assim foi. O dia foi complicado porque atravessávamos a costa e as dunas de areia de Noordwijk, uma praia interessante para ver, mas não para nadar. E olha que eu adoro água fria.

De ali o caminho segue por Leiden, uma cidade conhecida pela sua universidade e alguns museus interessantes de etnologia. Mas o melhor foi o parque maravilhoso que atravessamos quando entramos em Haia. Aliás, que cidade maravilhosa, uma das minhas preferidas de toda essa viagem. A Haia é a sede do governo, com construções imponentes e muitos museus e locais de interesse ao longo dos seus canais. Está também cheio de cafés e lugares para passar o tempo “indoor”, já que na Holanda chove muito e quase sempre.

Terceiro Dia – Haia –  Doordrecht

O percurso original nos levava a Papendrecht mas como só encontramos Airbnb en Doordrecht pensamos que seria uma opção ficar ali, que estava uns 5 km ao sul. Foi um dos dias que mais pedalamos. Saímos da Haia depois de percorrer uns 20 km dentro da cidade. O tour em bike nos leva a conhecer toda a cidade sobre rodas e isso é uma das coisas alucinantes da Holanda. Não existe lugar onde você não chega sobre rodas. E sobre duas rodas principalmente. Saindo da Haia, nossa viagem nos levava a Delft, outra cidade universitária como Leiden.

Delft, é uma das cidades mais antigas da Holanda e isso é evidente entre a grande variedade de belos edifícios, monumentos e tesouros escondidos que nos contam mais sobre os velhos tempos em que a cidade era uma cidade em expansão e cheia de comerciantes. Delft mantém seu caráter histórico com os canais típicos. O caminho segue em bicicleta até “Kinderdijk”, famosa por seus belos moinhos de vento. Esta é uma das vistas mais típicas da Holanda.

Tínhamos feito já uns 60 km até ali e faltava pegar uma balsa até a cidade mais próxima. Estávamos tão cansados que quando vimos que a balsa nos levava a Doordrecht decidimos ir diretamente até ali; uma cidade portuária com muito encanto e que realmente valeu a pena chegar antes porque tem muitas coisas para ver. Também é certo que chegamos antes da chuva.

Quarto dia – Doorcrecht – Utrecht

Outro dia perfeito. Dessa vez sem vento e com paisagens idílicos, cheios de parques, canais e cidades de conto de fadas. A viagem continua em direção ao outro lado do país, indo de Schoonhoven a Utrecht. Schooven é uma pequena cidade romântica, cortadas pelo rio “Lek”. Nas imediações, muitos agricultores cuidam das suas vaquinhas para a elaboração do lendário queijo Gouda. A partir daí, seguimos a uma das cidades mais pitorescas de toda a viagem: Utrecht, a quarta maior cidade do país e a com mais ambiente juvenil e estudantil que vi. Complicado foi encontrar lugar para jantar depois das 21h. Todos os lugares tinham já a cozinha fechada e tivemos que cruzar a cidade em busca de um lugar.

Utrecht é certamente uma cidade para voltar com mais tempo. Se posso dar um conselho a quem queira fazer essa viagem, que faça a sua viagem de dois em dois dias para poder conhecer melhor e com mais tempos os lugares que visitam, principalmente as cidades grandes da Holanda.

Quinto dia – Utrecht – Amersfoort

Esse foi o dia mais curto mas também superdivertido. A anfitriã do nosso Airbnb tinha gostado tanto do meu perfil na página web que nos convidou a jantar com ela. Tínhamos planejado sair de Utrech bem cedinho para poder chegar em Amersfoort e comprar uma garrafa de vinhos para não chegar de mãos vazias. O difícil foi cruzar o parque gigante que nos levava até ali. Foi uma subidinha, a única que tivemos em toda a viagem, mas valeu a pena. O parque é incrível, se respirava ar puro por todos os lados. E como era o dia com menos quilômetros, chegamos em Amersfoort 1 hora e meia antes do previsto. Compramos a garrafa de vinho e fomos dar uma volta na cidade, que é uma fofura, cercada de muralhas e cheia de cafés.

Bom, por não falar da janta. Coisas que só acontecem quando você faz esse tipo de viagem; conhecer gente nativa do país, de poder ver e sentir um pouco da sua cultura. Maikee nos convidou a uma velada maravilhosa, regada a vinho, boa comida e principalmente boa companhia. Uma pessoa para levar consigo.

Último dia – Amersfoort – Amsterdã

Decidi começar e terminar a viagem em Amsterdã pela comodidade do transporte. O avião chegava ali e saia dali 9 dias mais tarde. A realidade é que se pudesse mudar um pouco os planos, nem colocaria Amsterdã na rota. A cidade sem dúvida é linda e é a mesma que eu visitei faz 10 anos. Mas a quantidade de turistas é tão grande que faz com que perca completamente a identidade.

Saímos de Amersfoort cedo porque sabíamos q a viagem ia ser intensa… e foi. Foram 80 km no pedal, baixo, chuva, sol, vento, mais chuva, mais vento… e as vezes sem muita perspetiva de terminar a rota. Foi o dia mais maçante depois do primeiro. Tremendamente cansativo e entrar na cidade foi outra aventura. Uma aventura ver tanta gente, tanto ciclista, tanto tudo junto.

Um dos percursos mais cansativos foi quando estávamos paralelos a estrada, e víamos carros passarem por todos os lados. Os últimos 10 km foram eternos, mas ao chegar ao hotel me senti cheia de forças de novo. Podia seguir no dia seguinte. Meu problema não era a bike… era essa multidão de gente.

A viagem terminou com gosto de quero mais… e esse quero mais, era quero mais bike, quero mais natureza, quero mais paisagens. E também de quero menos. Quero menos stress, quero menos gente, quero menos confusão, quero menos multitude.

Viajar em bike me permitiu ver que a vida analógica pode ser tão prazerosa ou mais que uma vida no corre-corre na cidade grande, onde tudo é pra ontem e todos esperam resultados na mesma velocidade que se envia um correio eletrônico.

Às vezes é bom dar um passo atrás, e ver que a vida lenta também é uma delícia, e poder ir em cima de uma bike, numa velocidade 1.0 lhe permite apreciar uma árvore, uma construção, o sorriso das pessoas que cruzam com você no caminho.

Também me fez pensar em formas de vida mais sustentáveis, e o prazer de fazer as coisas no seu devido tempo sem correria. Com certeza essa é uma viagem para repetir.

E você, ficou com vontade?