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Vinte e quatro horas de chuva

Faz três dias que chove. Dizem-se que as chuvas continuarão nos próximos dias. Talvez a vila seja porque fica bem na beira da floresta. Estou às margens da Mata Atlântica.

Eu amei duas coisas desde a minha infância. Uma é a solidão preferida, a outra é a chuva. Mais precisamente, chuvas torrenciais; chuvas que duravam dias. Eu também amo o nevoeiro. Talvez tenhamos saído de um nevoeiro. Um dia vamos desaparecer no nevoeiro novamente. Dirão que era uma vez… É como se as árvores que desaparecem ao longe expressassem a vaga ilusão da nossa existência.
Solidão, chuvas torrenciais, o mar tão perto, e a Mata Atlântica atrás de mim, levando até as montanhas distantes.
Agora o outono está acabando, o inverno está chegando. A floresta está nublada, o céu está cinza. As aves, por outro lado, parecem menos frequentes. Se chover no mundo exterior, choverá no meu mundo interior também. O mar dentro de mim corre pela tempestade, uma névoa invisível cobre tudo ao meu redor. Até o sol nascer novamente.

Eu amo passar o tempo com a minha família. Mas às vezes preciso de solidão; tanto quanto pão e água.

Penso na minha existência, longe de tudo e de todos, me isolei por um tempo. É como uma dor existencial devastadora que alguns escritores e filósofos não podem aceitar e sofrer. Também estou procurando aqueles aspectos da minha existência que podem me trazer pouca felicidade. Às vezes, como Cioran, gosto de filosofar entre as ruínas; entre as ruínas filosóficas.*

A maioria das pessoas gostam das praias lotadas, do céu azul, das bolas de algodão das nuvens brancas, da atmosfera de verão. Eu também gosto desses às vezes. Mas sobretudo desde a minha infância, preferia o inverno… preferia a solidão, praias vazias que parecem não ter fim, estradas vazias com folhas voando, florestas distantes na neblina… Talvez seja porque tenho espírito artístico, não tenho não sei, talvez seja por isso.
Meu lado existencial sempre prevaleceu; às vezes eu sofria de dor existencial, e às vezes eu gostava da minha existência. A vida não é avança no equilíbrio entre os dois de qualquer maneira?

Quando olho para uma praia vazia, quando ando por lá sozinho, talvez uma gaivota que vejo ao longe ou das ondas que chegaram na praia vazia me lembre da minha existência; Na verdade não vivemos entre as ondas que vão e voltam da praia?

Estamos sempre tentando dar sentido às nossas vidas, não ouvimos o que muitos filósofos dizem há milhares de anos; dizem que ‘a vida não tem sentido’, mas não a ouvimos porque não suportamos viver sem sentido. Talvez a única coisa significativa no mundo seja a própria morte… Quem sabe; aqui coloco tudo nesta palavra, mais uma vez: Quem sabe…

“Ninguém pode se livrar da maior ferida, o problema de nascer. No entanto, aceitamos a vida e suportamos suas dificuldades com a esperança de cura um dia. Os anos passam e a cicatriz fica.” diz Emil Michel Cioran. (The Fall into Time, Emil Michel Cioran, Metis Publications, página 40.)

Mas como digo de vez em quando, embora sofra de dores existenciais, já não vejo o nascer como algo ruim. Porque não há nada que eu possa fazer sobre isso; Eu nasci e tenho que viver. O suicídio está longe de mim.
Quanto mais aprecio esta vida, mais vivo com sua amargura e doçura, e mais feliz posso ser. Então, às vezes… Porque tudo é temporário. Não há nada permanente. Talvez além do infinito.
Porque o espaço dentro e fora de nós é tão grande que nada pode preenchê-lo; vai ao infinito. Se acreditarmos que nossa vida é cheia de significado, estaremos apenas nos enganando.
“A cicatriz permanece.” Esta é a ferida da existência. Alcança muito fundo em nosso mundo interior. Talvez devêssemos nos acostumar a viver com a cicatriz.

Erol Anar

Santa Catarina, 2 a 4 de junho de 2022.

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O ser humano no mundo dos objetos

Queridos sonhos distantes...Recentemente estou pensando sobre o mundo dos objetos e o lugar do ser humano nele.

Acho que o lugar dos objetos nas nossas vidas é muito amplo e tem grande influência sobre nós. Estamos vivendo um mundo no qual estimamos mais os objetos do que os relacionamentos. No sistema capitalista o ser humano também é um metal. Nesse sistema o ser humano é como um prego, um objeto simples.

O ser humano não se interessa pelos problemas sociais e não pode dominar a própria vida.

Nós quebramos uma amizade de 40 anos num piscar de olhos, por causa de um objeto. Por exemplo, emprestamos algo para nosso amigo e depois se ele estraga um pouco, ficamos muito zangados. Nossa amizade torna-se sem valor.  Na escala de valores, ela custa menos do que qualquer objeto.

Anos atrás, o filme “Beleza Americana” (American Beauty), que ganhou Oscar, mostra numa determinada cena um casal discutindo, num momento em que o homem está sentado num sofá italiano que a esposa cuida muito. A esposa diz a ele que também devia cuidar do sofá. Quando ela termina de falar isso, o homem nervoso diz: “Isto são móveis.

 

Self-Portrait (II) by Erol Anar Mixed Technique, Abril 5, 2021. Copyright erol anar 2021.

 Nós compramos isso para nos servir. Temos dinheiro e podemos jogar esse sofá fora e comprarmos outro. Você nunca valorizou nosso relacionamento como valoriza esse sofá”.

Isto é, minha amiga, na realidade, você também não deu a mesma importância para as pessoas, valorizou mais os objetos.  Mas também para você mesma não deu importância. Por exemplo, se seu carro está com uma trava estragada, esse fato lhe tiraria o sono por três dias porque o carro é um objeto de valor para você. Mas, se você tivesse um problema na saúde pessoal não daria tanta importância assim,ao ponto de perder o sono. Se sua televisão estragasse, na mesma hora levaria para consertar, mas os seus problemas de saúde você sempre posterga para tratar depois e mesmo as pessoas ao seu lado também não recebem atenção imediata.

Você presta atenção maior e protege com afinco os objetos: “Não pode estragar!”, diz, e nessa situação o objeto não serve para você, mas, sim, você que serve para o objeto, sobretudo esta o pavor que alguma coisa aconteça a eles. A maior parte dos humanos, como você, fica  domesticado para manter sua imagem e objetos. Sempre nós escolhemos a eles e quebramos o relacionamento humano em mil pedaços.  Nós fazemos sacrifícios com o maior amor para um  objeto qualquer.

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Na Europa e nos Estados Unidos, nos últimos anos, um conceito é  bastante popular e virou moda: o feng shui . Especialmente em Londres e em muitas cidades têm lojas que vendem coisas respeitando o feng shui; livros, presentes, utensílios para cozinha, comidas, maquiagem e decoração. Muitas pessoas reorganizaram sua casa de acordo com o feng shui. Na internet tem milhares de web sites sobre esse assunto. Tem experts nesse estilo feng shui…

Se deixarmos a popularização e a comercialização de lado, o feng shui tem 3,5 mil anos e é uma arte de viver em harmonia, vinda da antiga China.  Significa vento e água. Vento e água, segundo os chineses, determinam a forma, a topografia da Terra. O que vemos ao nosso redor foi criado por cinco elementos: madeira, fogo, terra, metal e água. A energia yin e yang – yin feminino, yang masculino são igualmente importante. O feng shui foi derivado da filosofia do Taoísmo e prediz que o ser humano vive em harmonia com os objetos ao seu redor. De acordo com essa filosofia, reorganizar os objetos tem influência na vida humana, negativa ou positivamente. Se reorganizarmos os objetos de determinada forma, teremos, por exemplo, influência positiva. Algumas sugestões são essas: ”não guarde objeto estragado ou quebrado na sua casa; seus móveis serão arredondados (yin) e outros serão angulosos (yang); entre eles deverá haver harmonia; quando você abrir a porta da rua não deve ver uma parede vazia, é bom pendurar um quadro de paisagem ou um espelho, isso trará prosperidade; seu dormitório precisa pegar muita luz do dia, mas a cama não porque essa energia não vai deixar você dormir. Se você sentir falta de amor na sua vida, você deve jogar todos os brinquedos e coisas de criança fora do seu quarto, etc ….

Entretanto nossas vidas estão passando com objetos estragados que guardamos e não jogamos, desarrumando, dessa forma, nossas almas. Não percebemos isso.

De acordo com minhas idéias, a filosofia do feng shui dirige bem os objetos e chega numa harmonia com eles, reorganizando nossas vidas.  Quando dirigimos os objetos e  eles não nos dirigem  nós chegamos numa harmonia, numa vida tranqüila. E depois disso, reflexões positivas vão dar brilho nos nossos relacionamentos e vamos nos relacionar de forma mais positiva.

Finalmente, atualmente os objetos nos dirigem, nossos relacionamentos viraram uma  novela de problemas, não vemos os objetos como simples ferramentas. Os objetos trazem para as pessoas imagens novas, por isso as pessoas dão tanta importância para eles. As pessoas criaram um mundo de imaginação com seus objetos e fizeram uma vitrine para se exibir para o mundo com eles.  Esses tipos de pessoas não confiam neles mesmos, não podem criar uma idéia nova, não podem fazer intervenção apropriada nem na própria vida, nem se refugiar em sua imaginação.  É a ilusão do mundo pós-moderno. Segundo o pós-modernismo a imagem é mais importante do que tudo.

Por exemplo, vamos analisar a utilização do celular. Um grupo de pessoas conversando, mas todos olham o celular que possuem em cima da mesa, e de repente um deles toca, o dono o ataca para atender e começa a falar com alguém e ninguém se perturba com a  cena…. No entanto tinha alguém falando enquanto o telefone tocou e essa pessoa foi interrompida.  Depois que finalizar a conversa ao telefone, a pessoa vai voltar a falar com o grupo, quando, então, outro celular toca… Na realidade, nesse grupo, as pessoas estão fazendo monólogos, não dialogam entre si.  Pode ser  também assim, duas pessoas estão frente à frente, mandando recados pelo celular para eles mesmos. Nem percebem que estão cara à cara! Celulares têm muita importância no mundo das pessoas, eles ficam aberto 24 horas e não consentem que permaneçam desligados 15 minutos. Até parece que por esse aparelho vão escutar a coisa mais importante do mundo! As pessoas saem das reuniões falando ao telefone. Isto é, os celulares dirigem as pessoas e deveria ser ao contrário.

Segundo a filosofia do taoísmo as pessoas lutam com os objetos até que penetrem neles e tornam-se seus senhores. Nesse período as mãos ficam vazias contra a vida. Temos que recriar nossas vidas! Temos que organizar nossas vidas!

Podemos começar isso dirigindo os objetos e ignorando-os e, assim, delimitamos a influência deles sobre nós. Vamos ver, então, que nossa capacidade de amar vai aumentar e nossos relacionamentos vão melhorar.

Mas o que é pior minha amiga? Ignorar pessoas? Temos que ignorar objetos, não pessoas! Nossos relacionamentos estão uma novela de problemas e precisamos prestar mais cuidado ao tratar deles!

Os filósofos e os sábios vivem e usam poucos objetos. A filosofia dos dervishes, por exemplo, diz que um bocado e uma jaqueta são suficientes!

O filósofo Diógenes vivia num barril, um dia um grande Rei veio até ele perguntar o que ele queria. Ele respondeu “ – Apenas não faça sombra para mim, não quero mais favores do que isso!”.

Ele era uma grande pessoa em busca da virtude. Com uma lanterna durante o dia buscava a virtude. Um dia ele estava vendo que uma criança bebia água numa fonte com suas mãos, e ele pensou com ele mesmo: “ esta criança me ensinou que tenho coisas sem necessidade e então quebrou sua tigela”.

Você pode argumentar que os objetos fazem parte de nossa vida e precisamos deles, mas, se não podemos abandoná-los totalmente, não poderíamos, então, delimitá-los? O que você me diz?

Com amor,

Bruxelas, Bélgica,

13 de maio de 2001

Do livro “Café da manhã Existencialista” de Erol Anar

 
o sonho

O Sonho

“Nos encontraremos
Como se encontram as gaivotas e o mar…
De repente as gaivotas vão partir,
Nós nos abandonaremos
Como as ondas se distanciando do mar”
Tagore

Se eu tivesse achado você num cemitério que até pareceria abrigar uma multidão ou, então, na solidão do último dia do mundo…Se tivesse desejado encontrar com você na cabeça de um deus da montanha Nemrut ,que se murchou por causa de uma tristeza vivenciada há 3 mil anos, ou em cima da escultura da cabeça de uma deusa, desmoronada por causa do sol e da chuva.. eu teria desejado fazer amor com você, para depois sorrirmos e sentirmos melancolia…

Queria ser um morador de rua que nada tem e tem tudo, morar na mesma rua que você, ser digno e nunca dócil, ter uma doença sem remédio como um grande amor não correspondido, viver nessa pobreza mas ,ainda assim, ter vaidade como se fosse feito com bronze e, com minha parte mais humana, simplesmente destruir a cidade com meu amor.

Queria ser desesperado como Prometheus que fez crescer o fogo, ou triste como Aquiles que foi derrubado pelo calcanhar. Queria caminhar atrás da sua imagem, ao lado de um canal, com pequenos passos e sem conseguir suicidar.

Se sua sombra participasse da minha sombra, não sumiria na escuridão negra. Se eu fosse José, abandonado pelos irmãos num poço de água profundo para morrer, quando olhasse para cima, do fundo do poço, queria ver a sua silueta.

Queria ser um deus que odeia criar e um humano que odeia ser criado.
Se eu me purificasse, depois de um grande sofrimento pelo meu amor, queria me descobrir no deserto da rota da seda, como o grande amante Mecnun.

Se eu desaparecesse nas rugas finas da sua testa, ficaria com ciúmes de você como se fosse uma deusa do Olimpo.

Se me afastasse de você milhares de quilômetros, acreditaria que todos os estranhos que encontrasse seriam você. Queria multiplicar sua imagem na minha imaginação.

Se subisse até você, nos seus cabelos compridos como Rapunzel, ficaria muito feliz. Se fosse um sobrevivente de uma ilha que nem no mapa existe, esperaria por você lá até morrer ou se um primeiro navio me achasse, não desejaria sair da ilha nele, se você não estivesse ali.

Se amasse você até o infinito, talvez eu freiasse meu amor por medo dele acabar rápido, porque sei que o que cresce rápido da mesma forma termina. Se fosse o grande Dervishe Yunus Emre, que sofreu tanto, quando achasse você, pensaria que tenho que procurar sem achar, continuaria andando para frente.

 

Erol Anar
“Amor e Solidão”

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Todo mundo tem que possuir sua própria parede

 

Temos que construir nossa parede para podermos nos recostar nela. Temos que construir essa parede muito firme, com ladrilhos que sejam carregados com nosso esforço.

Temos que pensar nos nossos relacionamentos como se fossem organismos vivos. Se uma flor secou, um humano morreu, ou uma folha apodreceu é impossível devolvê-los para a vida. Os relacionamentos são assim também, quando um relacionamento termina reconstruí-lo é extremamente difícil porque já machucou os envolvidos demais.
Algumas pessoas fazem certas coisas nos seus relacionamentos sem prestar atenção, displicentemente e até com falta de educação. Logo depois, esfria o afeto que existia entre os envolvidos, o relacionamento estraga. Um tempo depois a pessoa que se comportou negativamente, como se não tivesse feito nada de mal, quer que o relacionamento continue como era antes.Essa pessoa não faz uma crítica própria, nem assume possíveis falhas, e quer apenas continuar relacionando-se sem pensar nas suas faltas, no mesmo tipo de relacionamento que mantinha anteriormente. Um dos meus amigos diz o seguinte: “ minha vida não é como um hotel que as pessoas quando querem entram e quando querem saem, não é fácil entrar.”
Eu prestei atenção nos últimos tempos no fato das pessoas encontrarem-se e passarem umas pelas outras fingindo que não se viram, só se não tiverem tempo hábil para escapar do inevitável encontro face à face, conversam falsamente, cumprimentando-se.
Se nosso relacionamento com alguém está estragado, sabemos que também acabou nosso relacionamento com o melhor amigo dele.
Porque as pessoas freqüentam psicólogos? Eu penso que às vezes não querem solução, querem ser escutados e compreendidos sem serem vítimas de preconceitos. O psicólogo irá escutá-los, mesmo que eles não procurem solução. A solução é essa, uma pessoa escutá-los. A maior parte do tempo não precisam fazer comentários sobre as situações que vivenciam.
Temos que construir nossa parede para podermos nos recostar nela. Temos que construir essa parede muito firme, com ladrilhos que sejam carregados com nosso esforço.
Ao relacionar-se, muitas vezes, uma pessoa se encosta numa outra com todo o seu peso e a outra pessoa o carrega, como se fosse sua carga, sem reclamar. Às vezes as pessoas precisam disso para pegar o poder do outro, suportar a vida, mas com a continuidade chega o cansaço e o carregador da carga se esgotará. Então, ele sairá e largará o fardo, irá para outro lado. Quem estava encostado cairá no chão, porque ele pensa que seus amigos são uma parede na qual podem recostar-se para sempre. Por isso ele mesmo não possui uma parede própria para se recostar. Até a eternidade ele acreditava que seu amigo teria que carrega-lo. Todo mundo tem que possuir sua própria parede.

 

Erol Anar