Cepa (vid) 
Foto: Rômolo D'Hipolito

Por que o vinho e a literatura têm tudo a ver

Foto: Erik Backlund
Foto: Erik Backlund

É engraçado lembrar da época que comecei a me interessar pelo mundo do vinho e sentir um real interesse em aprender sobre essa matéria. Devia ter uns 24 anos quando meu sogro chegou em casa com 12 garrafas de presente; vinhos espanhóis das mais variadas regiões.

No momento, estava começando a minha vida de casal, com nosso primeiro apartamento no centro de Madrid. Muitas águas rolaram, mas desde então, o vinho e eu criamos relações estreitas.

Sei que o Brasil não é um país que culturalmente se decante pelo vinho. Ademais do calor, e de uma produção ínfima, os impostos e as tarifas alfandegárias que se impõe sobre essa bebida fazem com que a sua apreciação seja privilégio de poucos.

Mundo do Vinho

Tive muita sorte em cair de para-quedas na Espanha, um país com mais de 1 milhão de hectares de produção vitivinícola e com um preço acessível a todos os bolsos. Espanha e Portugal, ademais de serem regiões vinícolas por antonomásia, com os vinhos mais acessíveis do mundo, possuem uma qualidade indiscutível.

O mundo do vinho ainda provoca certa repelência ou também ascetismo. É normal! Nossa ignorância se traduz em um escudo, um mecanismo de defesa inato, que tem certa dificuldade em aceitar aquilo que se desconhece. Como em todas as profissões, espertinhos aparecem por todos os lados; e muitas vezes quitam o prestígio de muita gente que levou o tema a sério e estudou muito pra chegar até ali.

Tentando aprender mais sobre esse mundo, que da noite para o dia se tornou a surpresa mais agradável que tive, comecei a estudar mais a fundo sobre o tema. Li uma serie de livros, comecei a ir a degustações de vinhos e viajar as regiões mais emblemáticas do mundo. Depois me matriculei em cursos de degustações mais sérios, em que ensinavam de verdade como reconhecer e apreciar aquela bebida que estava diante dos meus olhos.

Cepa - Uva Sangiovese - Chiati - Toscana - Italia Foto: Rômolo D'Hipólito
Cepa – Uva Sangiovese – Chianti – Toscana – Italia
Foto: Rômolo D’Hipólito
Os cheiros da cozinha

Comecei reconhecendo cheiros da cozinha – a canela, a baunilha, o tofee, o café, o alecrim, a menta, etc. Toda minha cozinha se tornou um oásis dos aromas. Sem falar das frutas, reconhecer o cheiro e seu sabor sem muito esforço.  Depois passei ao jardim, buscando identificar aromas das plantas – das margaridas, das rosas, do jasmim. E cada vez mais, ia descobrindo cheiros peculiares, como o da minha rua, do meu apartamento, da minha roupa.

Foi pouco a pouco, descobrindo esse novo mundo, que tive a sensação que cada garrafa de vinho que abria em casa, que cada vinho novo que descobria, uma história se contava. É isso mesmo: cada garrafa de vinho é uma novela em si, tão complexa, tão surpreendente que você tem que estudar muito, mas muito mesmo pra começar a ler e entender essa história.

Literatura e o vinho

Quem gosta de literatura sabe como é gratificante ler romances que parecem um quebra cabeça, e que quando você termina, sente como se um novo mundo se abrisse diante dos seus olhos. Penso sempre em Ulisses; que livro mais complicado – e que vitória terminá-lo. Ou Amarelinha de Cortazar – o livro que você pode se dar ao luxo de começar a ler por capítulos diferentes que o primeiro.

O vinho é assim. Não é uma historia linear, coerente e com um só ponto de vista, uma só interpretação. Mas lê-lo é algo realmente extraordinário.

Em cada garrafa se esconde sabores, aromas, histórias de uma terra, de uma região. Descobrir-lhes é aguçar os sentidos, aperfeiçoar os sentimentos. É utilizar os sentidos para começar a entender o que se esconde detrás daquele líquido, daquelas uvas, daquela terra, daquela taça.

Geralmente eu chego em casa todos os dias, depois de um dia longo de trabalho e me sirvo uma taça de vinho. Junto a ele pego meu livro e leio por mais ou menos uma hora. Esse momento, para mim,  não é só um momento de desconexão do mundo, mas também o de juntar prazeres, juntar literaturas, ler duplamente.

Lazio - Italia Foto: Romolo D'Hipolito
Lazio – Italia
Foto: Romolo D’Hipolito

Quando tenho uma garrafa nova em casa, muitas vezes espero para abrir em uma ocasião mais ou menos especial, com amigos ou sozinha. Também faço muitas vezes um exercício solitário, de ler, de desvendar cores, aromas e sabores – isso que hoje em dia damos o nome de degustar.

Um exercício sensorial

Uma vez feito esse exercício,  busco tudo sobre a garrafa – região, ano, uvas, forma de preparo e manipulação. E de toda essa informação começo a entender a sua história, o seu passado, o seu legado, e a apreciar o momento presente em que a desfruto.

São duas literaturas que se confluem: a que já foi escrita e está dentro da garrafa, a e que eu começo a escrever – do meu momento presente, de admiração e contemplação da vida: carpe diem!

Foto: Erik Backlund
Foto: Erik Backlund

Como os livros, não são todas as garrafas que escondem uma grande história. Argumentos medíocres também se podem encontrar nas melhores regiões.

Mas quando se descobre o grande clássico, imortal e perene a tudo ao que rodeia, os posso garantir que para o bom leitor, uma taça basta.

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